VICTÓRIA ALADA
(Niké tis Samothrakis )
Por Lara Lunna
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ISBN: 978-85-903897-2-9
Diagramação: Lara Lunna
Capa: Lara Lunna
Dados internacionais de catalogação (CIP) elaborados na fonte por Iraci Borges – CRB8 - 2263
Lunna, Lara
Victória alada. São Paulo: Editora Corações e Mentes, 2007.
240 p. (Ficção Policial)
ISBN: 978-85-903897-2-9
Organizadoras: Glória Azevedo, Helena Fontana e Lúcia Facco
1. Literatura. 2. Ficção Policial. I. Título. II. Azevedo, Glória, III. Fontana, Helena, IV. Facco, Lúcia, orgs.
CDD: 330
Editora Corações e Mentes
Rua Matias Aires, no 78 – Consolação
São Paulo – SP – CEP – 01309-020
Fone: 011- 32535801
Todos os direitos reservados à Autora.
Capítulo
I
“Sic volo errare, sic volo perire”
- Assim quero vagar, assim quero perder-me -
Naquela manhã, véspera do seu aniversário, ela decidiu presentear-se com um simples gesto de humanidade. Simples para ela e importante para salvar uma vida.
Viajou cedo de sua cidade para a capital paulista para a doação de medula óssea. No balcão de atendimento do Hospital das Clínicas, a recepcionista informou que não havia no sistema, registro de doador com o nome, Victória Di Angelis.
Desapontada, mas ainda decidida a desfrutar de plena liberdade, misturou-se entre as pessoas que iam e vinha na ampla avenida do centro, parando aqui e ali para observar monumentos, jardins e vitrines.
Defronte a uma joalheria, ela esqueceu-se do lado de fora da vitrine, encantada com um pingente em forma de orquídea, com as pétalas em lápis-lazúli.
Sua abstração rompeu-se quando a jóia foi retirada da vitrine e entregue para alguém.
Victória procurou o rosto da mulher que comprara a jóia e seu olhar prendeu-se em um par de olhos azul-violeta intensos que ela sabia nunca ter avistado semelhantes.
Esqueceu-se completamente da primeira jóia, magnetizada na força pulsante do olhar da desconhecida.
Viu quando ela saiu da joalheria, caminhando rápida pela calçada, acariciada pela brisa morna daquela manhã de sábado. Seguiu-a, poucos passos atrás, até vê-la desaparecer nas escadarias que levavam ao metrô.
‘ O que está fazendo, Di Angelis? Espreitando uma desconhecida
Determinada a não perdê-la de vista, desceu as escadarias, saltando os degraus, dois a dois.
‘ Não pode ser errado contemplar um pouco mais, uma fascinante mulher em um dia tão bonito ’.
Na plataforma, o vagão parou e elas entraram. Havia poucas pessoas. Di Angelis sentou-se, mas a “olhos de Ametista” permaneceu em pé.
‘ Vá embora enquanto ainda tem algum controle deste teu temperamento impulsivo’.
Fechou os olhos, massageando a fronte. Logo parariam em alguma estação em que ela sairia e nunca mais se veriam. Seria a solução. Sua falta de ação definiria tudo.
‘ Regras, regras, sempre obedecendo regras.’
O olhar dela, misterioso e sempre preso ao de Di Angelis, parecia fulgurar. Promessas?
O metrô parou na estação da Sé e as portas abriram-se. A mulher misteriosa moveu-se em direção da porta mas foi arrebatada por Victória que a beijou ardentemente.
‘ Eu devo estar alucinada ’.
Uma hora depois, elas estavam sós dentro de um chalé rústico em meio à mata densa da Serra da Cantareira.
A ansiedade e nervosismo quase a fizeram desistir, porém, toda vez que a olhava, seu corpo reagia feroz, faminto.
__Como posso chamá-la?- perguntou a mulher misteriosa.
__Brand. E você?
__Chame-me, Clair. Clair de Lune.
Ela saiu para o cômodo contíguo e a policial permaneceu parada no centro do amplo quarto.
O teto alto, pontudo com estrutura sustentada por maciças vigas de madeira, tornava o ambiente aconchegante. Morno quando a neblina ainda cobria a serra e fresco ao sol da tarde.
No lado esquerdo da ampla cama, uma lareira de pedra vermelha e do direito, um antigo piano tipo armário. Adiante da cama, duas amplas portas davam acesso a uma varanda.
Ela reclinou-se sobre o guarda-corpo da varanda, observando a magnífica vista panorâmica sobre os montes e pinheiros que desciam verdejando a serra abaixo.
__Você aprecia a paisagem? – disse a voz quente ao seu lado. Ela estava com os cabelos negros azulados soltos e penteados para trás. Trajava um roupão de seda perolado, com bordados que formavam desenhos delicados na gola e punhos da manga comprida, aberta em forma de sino.
__Sim, é linda. – Victória sorriu.
__Gosto destas paisagens. Lembram, em parte, a região onde nasci. Mas há um detalhe diferente. Talvez uma cor na aquarela dos montes, campos e montanhas ao fundo. O lilás dos campos de lavanda.
Di Angelis a observou relatar sobre sua terra, inebriada. A imagem dela, recortada contra a luz, lhe parecia envolta em uma aura mágica. Seus gestos, a forma de caminhar, reclinar a cabeça, eram um misto de uma graça e soberania. Rainha. Não havia nela movimentos excessivos ou insuficientes. Todos harmônicos e exatos.
Em certo instante, ela tomou a mão de Victória. Os cílios negros, contornavam aquelas jóias que fulguravam e a fitavam com ânsia febril, quase delírio.
__Não temos muito tempo. – sussurrou com dificuldade.__ No mundo há apenas verdades. As mentiras e os enganos, são distorções sensoriais de algo que, na sua essência é verdadeiro. Porém, há apenas uma verdade, pura, sem distorções. A rainha de todas. A morte.
Victória sobressaltou-se.
__Você está morrendo?
__A melhor parte de mim.
A voz de Clair, soou cheia de dor, amargura.
Ela deixou a varanda e entrou no quarto. Di Angelis permaneceu reclinada, os olhos vagando pelas copas das árvores enquanto a mente procurava alcançar o sentido das palavras ditas por aquela mulher misteriosa.
Os acordes da Sonata ao Luar ao piano, cheios de beleza e melancolia, emocionou-a profundamente. Ela revelava a intensa dor, a paixão de quem a interpretava no piano.
Caminhou até Clair, tomando-a nos braços sem que ela lhe resistisse. Deitou-a na cama com reverência, contendo sua ânsia que lhe pulsava forte no peito e na fronte.
__Não tenho muitas certezas, e acredito em poucas coisas. Uma delas, é a morte, apesar de que às vezes, me parece um conceito distante, pouco nítido. Porém, a única certeza constante que possuo agora é sobre o meu desejo, o seu e que algo muito forte nos une neste momento.
Desabotoou o roupão dela, ciciando ao ver os montes gêmeos alvos com auréolas rosadas. Tocou-os, apertando a carne macia nas palmas das mãos.
Os olhos fechados para sentir tudo com intensidade.
Clair enlaçou-a pelo pescoço, trazendo-a para si, beijando ardentemente os seus lábios. Em um movimento ágil, girou o corpo sobre ela, montando-a. Suas mãos agora, desabotoando a camisa de Victória, tocando cada parte da sua pele dourada acetinada que desnudava com lascívia. Tremia e ofegava, removendo a calça e depois a roupa íntima da jovem até deixá-la completamente nua.
__Você é linda! – exclamou quase sem voz. __A cor dos seus olhos. Olhos da madrugada. Suas pupilas...
Beijou-a, demorando-se em percorrer-lhe o corpo com as mãos e lábios. Tocava-a, sorvendo os seios intumescidos, vezes mordiscando-os na ponta.
Victória assistia inebriada a mulher ardente que lhe fazia amor.
Clair estendeu o braço e trouxe para os lábios, um cálice com um líquido azul da consistência de um licor. Sorveu um gole dele e beijou Victória, compartilhando com ela a bebida perfumada de sabor exótico. Encheu o cálice novamente e desta vez, verteu o líquido no corpo de sua amante, desenhando um caminho que iniciava nos lábios, percorria o pescoço, seios, seguindo adiante até o triângulo formado pelo encontro de suas coxas.
Os lábios voluptuosos de Clair entreabriram-se para com a sua língua rosada, percorrer Victória, lambendo-a e se enveredando nela. Agoniada e a caminho do êxtase pleno, ela moveu os quadris ritmadamente e sua amante compreendeu que ela chegara ao limite de sua necessidade.
Clair tirou seu roupão, exibindo o corpo nu que exalava o odor almiscarado de sua excitação.
__Ressuscita-me! – pediu.
Encaixou-se em sua amante, gemendo em uníssono com ela quando seus sexos quentes e úmidos se uniram. Devagar, moveram os quadris, acertando o ritmo de seus corpos febris como os pares enlaçados nos primeiros passos de uma dança sensual.
Ela conduziu Victória ao prazer, precipitando-a com o ritmo, agora frenético de seus corpos. A força do orgasmo fez o corpo da jovem convulsionar na cama. O braço dela chocou-se contra a garrafa de licor e o cálice sobre a mesa de cabeceira, despedaçando-os na queda.
__O que está sentindo, Brand?
Ela abriu os olhos por breves momentos, encontrando o olhar enigmático de Clair, preso
__Eu me sinto como se estivesse... – pausou. __Voltando para casa.
E ela adormeceu.
"A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real...”.
- Arthur Schopenhauer -
Havia algo na Delegada que impressionava a nova médica legista. Talvez o rosto com testas altas e os cabelos densos penteados para trás. Ou então os olhos como os de uma águia, quase ocultos pelo sobrolho proeminente e... as inúmeras linhas de cicatrizes antigas que lhe fugiam da face para o pescoço, ocultando-se sob a roupa.
A chefe da Delegacia de Homicídios acercou-se do cadáver. Um quase imperceptível ricto de desaprovação lhe cruzou o rosto quando reconheceu, entre a equipe que procurava evidências ao redor, o policial Felipe Duarte.
__O horário aproximado do óbito é entre meia-noite e três horas desta manhã. – informou Lizandra Torres consultando o termômetro que havia retirado do reto da vítima. __Em análise preliminar, o que causou a morte foi este ferimento no peito. O sangramento externo é mínimo, o que indica que ele morreu de hemorragia interna causada por uma lâmina estreita que lhe trespassou o coração.
O chefe dos peritos exibiu nas mãos enluvadas, uma carteira com documentos.
__Temos aqui, documentos da vítima, uma boa quantidade de dólares, cheques e cartão de crédito, o que afasta a possibilidade do homicídio ter sido decorrente de um roubo.
Giuliana perscrutou com a lanterna o lixo no canto daquela ruela sem saída. O nevoeiro da madrugada e a fraca luz da lua não ajudavam com a visibilidade. Viu um cachorro pequeno e magro, indiferente ao movimento ao redor, chafurdando o focinho no lixo. Possuía uma coleira improvisada de retalhos coloridos trançados.
__Havia um monte de cachorros sem raça com coleira de trapo por aqui quando chegamos. Estavam fazendo um banquete no meio do lixo. Acho que foram eles que encontraram o cadáver e o dono deles, um mendigo esquisito, ligou para o 190.
A Delegada anotou mais aquela informação no seu bloco de notas. Mandaria averiguar depois. Voltou a centrar sua atenção na face do morto. Os olhos vítreos e o rosto crispado congelados em um esgar de horror.
__Pode verificar agora dentro da boca da vítima? – ela pediu para a legista. Sabia que o exame cadavérico completo só seria realizado horas depois no necrotério, mas aquela primeira investigação poderia confirmar ou não as suas suspeitas.
Lizandra postou-se melhor ao lado do corpo e com habilidade, desencaixou o maxilar enrijecido do morto. Na boca escancarada havia um lenço ensangüentado. Dentro dele, um pequeno papel com a frase: “A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real...”.
A Delegada ligou imediatamente para o celular de Brandão, chefe do escritório da Interpol
Filósofo da Morte
__O “Filósofo da Morte” voltou à ativa após ter desaparecido por quatorze anos. A Interpol acreditou que ele tivesse sido morto com a guerra de vingança deflagrada pelo grego Stravos Dikópolus. – exclamou Rômulo Brandão enquanto analisava o material diante de si.
O Delegado de Polícia Federal de trinta e oito anos sabia o que podia ter causado a volta dos ataques daquele assassino serial: o retorno ao país de Stravos, líder da poderosa organização criminosa chamada por ele de Hecatônquiros.
__O exame cadavérico indica que o ferimento que causou a morte foi feito com uma lâmina longa de dois gumes. No lenço encontrado dentro da boca do cadáver estava impresso, em sangue seco, uma série de desenhos. O assassino quis ter certeza de que saberíamos que a morte era realmente sua obra. Os desenhos correspondem com os da lâmina desta adaga.
Giuliana exibiu a fotografia de uma exótica e trabalhada arma branca.
__A Kindjal. Uma raríssima adaga russa forjada para o Czar Mikhail Romanov no século XVI e roubada há mais de trinta anos da Catedral de São Basílio
A Hecatônquiros funcionava como uma espécie de Holding do crime. Tratava-se de uma “empresa” criminosa de Stravos que controla diversas outras “empresas”. As atividades de cada uma variavam entre tráfico internacional de pessoas, órgãos, armas, eletrônicos, produtos falsificados e drogas. Porém, o grego reservava a si, o controle direto da “menina dos seus olhos”. O roubo e tráfico internacional de jóias, diamantes, obras de arte, peças e artefatos raros.
__Ironicamente a Kindjal, arma branca que pode ter sido roubada por Stravos, trinta anos atrás, foi a que acarretou a ruína de sua filha e está sendo utilizada para liquidar com seus aliados. Não há dúvida de que o “Filósofo da Morte” voltou à ação e quer que a polícia e o grego saibam disso.
Diante da mesa de seu escritório da Interpol
__Tenho aqui o resultado da pesquisa sobre a frase encontrada dentro da boca da vítima. – exibiu Ângelo.__O trecho completo é: “A felicidade não passa de um sonho, e a dor é real...Quanto a isso, não posso fazer outra coisa senão me resignar, e dizer que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelo pesar”. O autor é Arthur Schopenhauer, filósofo alemão.
__E pelo modus operandis, devemos prever que há mais duas ou três mortes “agendadas” pelo homicida. – continuou Brandão.__As vítimas escolhidas estão entre os homens que gerenciam os negócios de Stravos Dikópolus no Brasil.
Ele fez uma pausa e ergueu os olhos dos papéis. Por uma fração de momento, julgou ter avistado uma expressão nova no rosto costumeiramente pétreo da ex-cunhada. Havia o esboço de um sorriso quase tímido direcionado à atraente legista.
‘ Giuli interessada em alguém? ’
Rômulo acompanhou parte do sofrimento atroz de Giuliana quando, três anos atrás, ela perdera tragicamente sua companheira. Desde então a Delegada não demonstrara interesse por qualquer outra pessoa.
__Então, já temos bom material para a primeira reunião com a equipe da Interpol estrangeira, amanhã. – Ele finalizou, recolhendo os papéis, fotografias, desenhos esquemáticos e o laudo cadavérico de sua mesa.
__Amanhã? – ecoou Giuliana, pestanejando várias vezes antes de situar-se completamente no contexto. __Sim, até amanhã já providenciaremos relatórios mais completos. Colocarei alguns policiais a campo. Irão colher informação na região e buscar possíveis testemunhas. Também observarão e farão relatório sobre a movimentação que se espera que ocorra no submundo do crime quando a notícia da morte de um “gerente” do velho grego se espalhar. Temos que averiguar todas as possibilidades. – ela finalizou já abrigada no seu distanciamento impenetrável costumeiro.
Somne, quies rerum, pax animi
- Ó Sono, repouso dos seres, paz da alma –
Victória abriu os olhos e espreguiçou-se. Olhou ao redor e viu que estava dentro de um vagão do metrô. Não costumava adormecer em vagões, porém não deu importância ao fato. Saltou na estação da Luz. Sentia-se disposta, livre e vitoriosa. Fora aprovada em todos os testes de recrutamento de policiais para a Força Tarefa Especial com a Interpol e agora, deveria esperar o convocamento para os treinamentos. Claro que distribuíram entre eles um enorme estatuto com regras até de como “se espera que o recruta deva se portar em público”. No entanto, observar aquelas regras não deveria ser difícil para uma pessoa acostumada a acatar os “1001 Mandamentos de Letícia”.
Caminhou despreocupada e esquecida, como de costume, desfrutando o sol tépido sobre sua pele e o movimento das ruas da cidade que nunca dorme.
Parou em uma banca de revistas e comprou um jornal. No cabeçalho, em letras minúsculas o data: domingo.
__Amigo, há um erro na impressão deste jornal. Aqui está escrito que a edição é de domingo e estamos no sábado.
O jornaleiro sorriu para a moça alta e consultou seu relógio.
__São dez horas e vinte minutos da manhã do domingo.- ele respondeu categórico.
Ela sentiu uma pontada nos quadris e fez uma careta, levando a mão ao local da dor. Enfiou os dedos abaixo da calça jeans e sentiu o esparadrapo. Alarmou-se por um momento, mas depois se tranqüilizou quando lembrou o que havia acontecido.
__Está sentindo dor, moça?
__Sim, mas é só um pouco. Nada que uma aspirina ou outro analgésico não resolvam. Doei medula óssea. Isso explica tudo. Eu tive que passar o sábado e pernoitar no hospital. – explicou aliviada por ter descoberto como foi que o sábado inteiro “sumiu” da sua memória. Na verdade não sabia que a tal anestesia podia lhe dar um apagão de um dia.
Aquele arranjo de doação de medula, ela havia feito sem contar a ninguém. Não podia correr o risco de que caísse no ouvido de sua sempre onisciente mãe.
__Você tem olhos diferentes, moça. – disse o atendente na farmácia quando lhe entregou as cartelas de analgésico.
‘Cadê minhas lentes de contato?’
Ela colocou os óculos escuros no rosto e seguiu caminho para o apartamento do seu tio, Rômulo Brandão.
A cada incômodo em seu quadril lhe causava, ela lembrava da importância do que fizera. A cada dia, muitas pessoas morriam na fila de espera por doadores de medula óssea. Encontrar um doador compatível, que não fosse parente próximo, era uma possibilidade na proporção de um para cem mil.
Lembrava-se que o tio a recebera na manhã do sábado em seu apartamento, pensando que ela viera para a capital para passear pelos bares, fazer algum programa cultural e rever amigos. Ela viera para doar a medula e depois, fazer o restante da programação, se tivesse disposição. No entanto, ela sentia-se muito disposta e bem.
Depois, não havia mais qualquer lembrança.
‘ Não deve ser importante’.
Procurou na sua bolsa e lá encontrou um folheto impresso com perguntas e respostas sobre os procedimentos e prescrição dos cuidados a serem observados pelo doador de medula. O único efeito adverso para um doador seria pelo menos três dias de desconforto localizado, leve ou moderado, sanado facilmente com o uso de analgésicos.
Voltou para o metrô e saltou na estação Paraíso. De lá caminharia menos de quatro quadras até o apartamento de Rômulo.
Usando a chave extra que ele lhe dera, entrou e viu o bilhete sobre a mesa da sala. Brandão teria que trabalhar naquele domingo em um monitoramento. No fim do bilhete, indicava onde havia lasanha, comida congelada, frutas e verduras. Encerrava com “Feliz Aniversário” grafado em letra maiúscula.
‘Ah, o meu aniversário’.
Ela sorriu e foi colocar a lasanha no forno. Comeu com voracidade. Depois tomou um banho demorado no banheiro de hóspedes.
Estranhamente, além muito bem disposta, sentia-se até um pouco eufórica.
No banho, examinou a parte superior de suas nádegas e só encontrou quatro pontos levemente arroxeados no local onde a agulha da punção devia ter sido introduzida, cobertos por pequenos esparadrapos redondos.
Pretendia dormir uma ou duas horas e depois, sair para escalar uma parede de média dificuldade na região onde ficava o sítio de seu pai. Talvez passasse por lá para uma visita rápida mas não sabia se estava preparada ainda para encontrá-lo.
Sua irmã Nicole ligou e elas ficaram conversando e rindo por pelo menos meia hora. Adorava aquela adolescente de treze anos. Não conversava com ela sempre que sentia saudade. Nem sempre podia arcar com as despesas de uma ligação DDD de meia-hora ou mais. Já se acostumara a fazer parte da “facção” remediada da família Brandão. Na verdade, à exceção de Letícia, exorbitantemente rica, todos os Di Angelis e os Brandão, pertenciam à classe média brasileira.
Com exceção de uma ou duas regalias que ela gostava de ter quando morava com os pais, não sentia falta de muita coisa. Claro que gostaria poder ligar para a irmã com mais freqüência. Na verdade ela gostaria que Nicole estivesse
Mesmo não estando morando com os pais desde os treze anos, Victória freqüentava a casa deles praticamente todos os fins de semana. Suportava as exigências da mãe para poder ficar perto da irmã e do pai. Porém, desde o ano anterior, com o desastre que atingiu seu pai, Letícia decidira levar Nicole para o exterior e a saudade as destroçava.
‘Não se pode ter tudo’ - resignou-se.
Abriu o armário do quarto de hospedes para pegar um pijama e diante de si, surgiu a surpresa: Quatro caixas de presente de diferentes tamanhos alinhadas na prateleira. Cada uma com um cartão indicando quem havia presenteado. Da esquerda para a direita, a caixa era de Rômulo. Na segunda, Andréa, ex-mulher dele. Na terceira, os seus lábios esfriaram ao ler o nome de Letícia. Como ela se atrevia a mandar um presente? Voltou a sorrir ao ver a caixa de sua irmã Nicole.
Abriu-a imediatamente e havia nela uma caixa com minúsculas peças de uma replica do avião do Barão Vermelho, como ficou conhecido o alemão Manfred Von Richthofen. Era dele a frase “Se sair vivo desta guerra, é porque tive mais sorte do que cérebro”.
A caixa indicava a foto do bonito triplano vermelho com a cruz de ferro que ela já se antecipava o prazer de montar e dependurar no teto de seu apartamento.
Sorriu embevecida ao ler o bilhete longo onde Nicole, com sua letra redonda lhe falava sobre distância, saudade e solidão. No fim ela pedia que, quando avistasse o “Barão Vermelho”, o dependurasse no teto do quarto, para que ao acordar, Victória lembrasse dela.
‘Como eu poderia esquecer de quem amo? ’
Na caixa de presente de Brandão, uma pequena observação do lado de fora do envelope: “Para o caso de não poder encontrá-la até o fim do domingo”. Abriu a caixa e encontrou uma pistola glock nova, com carregadores, coldre e equipamento para a limpeza. No cartão, felicitações e no fim, a recomendação: não portar antes de um treinamento específico. Bem no estilo cauteloso e protetor de Rômulo.- ela pensou.
Andréa a tinha presenteado com um aparelho celular novo, múltiplas funções e com “alta resistência a choques”. Ela pedia desculpas por não ter entregue o presente pessoalmente, mas, estava ilhada em uma fazenda no Pantanal Mato-grossense, estudando as Araras Azuis. Era bióloga.
Victória riu. Andréa Lima Toledo sabia bem sobre a vida curta dos aparelhos celulares da jovem policial. O último que tivera, ela deixara cair dentro do vaso sanitário.
Decidiu guardar o aparelho para quando o seu atual, sofresse algum “colapso”.
Ignorou a caixa de presente de Letícia. Talvez um outro dia a abrisse. Não aquele. Já sabia o que havia dentro. Ou um eletrônico ou dinheiro. Era sua forma de expressar afeto.
Porém, intuiu que talvez, houvesse algo diferente na caixa naquele ano. Talvez alguma coisa referente ao seu pai.
Abriu e constatou que acertara. Havia vários retratos de Antonio nos “tempos de paz”. O rosto dele, com expressão resoluta, inteligente e sobretudo, misericordiosa do bom juiz que ele havia sido um dia. Talvez por mais este motivo, Di Angelis gostasse do Barão Vermelho. Ele e Antonio Di Angelis possuíam traços fisionômicos semelhantes. Havia também algum dinheiro e um laptop novo.
Abandonou seus solilóquios para organizar seu equipamento para a escalada. Era importante para a segurança, inspecionar cada peça.
Esvaziou sua mochila sobre a cama e entre seus pertences, viu uma caixa retangular finamente recoberta por veludo negro. Abriu e uma jóia delicada em forma de orquídea com pedras azuis surgiu diante de seus olhos estarrecidos.
Pelo material e acabamento fino, ela concluiu que era uma peça cara. Mas de onde teria surgido? Não se recordava.
Kirié
- Senhor - em grego-
Sobrevoando o atlântico em direção ao Brasil, o Kirié refletia sobre a morte em peculiar circunstância de um dos “gerentes” da Hecatônquiros no Brasil.
Quatorze anos atrás, o seu inimigo que se intitulava “Dracul”, Dragão em romeno, conhecido popularmente pelos brasileiros como “Filósofo da Morte”, iniciara uma ofensiva maior contra ele e sua família. Stravos não se importou com os ataques aos chefes das quadrilhas que comandava. Sempre poderia substituí-los, pois os considerava como parte do “gado”. No entanto, “Dracul” fora adiante e o privara da sua filha amada. Ekaterina Hécate Dikópolus, filha de Zara, a ruiva circassiana. Sua segunda mulher.
Na ascensão de sua carreira criminosa, o grego angariara muitos inimigos. Nenhum como aquele.
Na época, com esperança de resgatar a filha, Stravos oferecera ao inimigo uma fortuna exorbitante em ouro, obras de arte e dinheiro.
Esperou a resposta e nada obteve além do silêncio, mensageiro de maus presságios. Meses depois do seqüestro, recebeu pelo correio uma arca de madeira finamente trabalhada que ele sabia pertencer à filha. Estava cheia de serragem que servia para acomodar em seu interior, três vidros com tampa selada com parafina. Um, continha os lindos cabelos de Ekaterina. O outro estava cheio de sangue e no terceiro, havia um coração humano ainda com uma adaga trespassada. O artefato não era a valiosa Kindjal, a adaga que ele presenteara à filha e sim uma réplica dela.
Aquela macabra mensagem só confirmou o que já desconfiava. Ekaterina havia sido morta, à despeito de todas as suas tentativas para salva-la. Mas o assassino lhe levara a filha mas não conseguira arrancar dela o segredo para entrar na necrópole subterrânea do Kentron. O indício maior era que ninguém havia conseguido entrar na fortaleza subterrânea do Kentron para se apossar da fortuna guardada ali. Somente ele e sua filha possuíam o segredo de acesso seguro ao subterrâneo.
Para vingar-se, ele contratou um exercito de assassinos de aluguel oriundos da Europa e América Latina. O sangrento ataque maciço silenciou o Dracul. Não contabilizou os mortos. O certo era que, por causa da mortandade produzida, desta vez ele não conseguiu manter-se invisível aos olhos da polícia brasileira e tivera que mover a sede de sua organização consigo para a Grécia.
O motivo de sua saída não era apenas por ter perdido a sua invisibilidade, à despeito que não havia como incriminá-lo. Era o medo. Este último, inconfessável.
Ele temeu o assassino que não se deixara seduzir por toda a riqueza que ele havia lhe oferecido pela vida de sua filha. Stravos acostumara-se a corromper pessoas e nunca havia encontrado qualquer uma delas que pudesse resistir-lhe. Quer pelo oferecimento de fortuna, poder ou pela cruel ameaça.
‘ Encontre onde mora o coração do homem e saberá como desvia-lo ’.
Esta era sua lei magna que se demonstrara eficiente por mais de sessenta anos. Até que, descobrira tardiamente, que no coração do “Dracul” só havia um propósito: destruí-lo. Este propósito ele não poderia demover.
Apenas seu filho, Tiago Prometheo havia permanecido. Ele não sabia se por coragem ou por ambição. Os outros cinco filhos, que o seguiram para o exterior, o fizeram possivelmente pelo temor de encontrarem destino semelhante ao de Ekaterina. Mas o patriarca grego mantinha em si, também a desconfiança de que algum dos sete herdeiros havia entregue para o assassino o local onde Ekaterina estaria refugiada. Os segredos que ela conhecia, dariam vantagem a quem ambicionava suceder o pai no comando da organização e com isso obter o controle da fortuna da família e poder.
Agora ele precisava retornar para iniciar o lento processo de escolha do sucessor e, secretamente, executar seu plano de Vingança. Além dos assassinos comandados por Miklos e Tessa Kroparidon, o ele trazia consigo o “Anjo Vingador”, uma arma letal, capaz de aniquilar uma grande quantidade de almas em silêncio, sem deixar pistas ou testemunhas.
E o ressurgimento do Dracul, naquele momento lhe era oportuno. Aumentaria sua chance de recuperar a “chave” perdida para a fortaleza subterrânea.
Apesar de próximo de completar oitenta anos, Stravos era dono de saúde vigorosa. Até o ano anterior. Quando sofreu um Acidente Vascular Cerebral, que lhe causou paralisia e cegueira, ele, conhecedor da outra passagem de entrada no Kentron, esqueceu-se da sua “chave”. Por ter um cérebro poderoso, ele não confiara aquele segredo nas suas anotações. Apenas o guardara na memória.
O Brasil lhe servira de pátria por boa parte da vida. Ele aportara ali ainda bebê no colo de sua mãe. Há muito decidira que naquela terra que seria sepultado.
Gabriele Moreaux
Rômulo retornou para seu apartamento por volta das quinze horas da tarde do domingo para um descanso de pelo menos três ou quatro horas antes de retornar para o monitoramento da entrada dos Dikópolus pelos aeroportos. Não encontrou a sobrinha, mas um bilhete dela, afixado na geladeira, agradecia pelo presente e avisava que, provavelmente só voltaria tarde, para pernoitar.
‘ Jovens de hoje, sempre dispostos a virar a noite pelos telhados, procurando um corpo macio e quente onde se aninhar.’
Sobretudo Victória. A máxima, uma paixão em cada porto se aplicava perfeitamente à sobrinha. Apesar de que, ultimamente, após os meses freqüentando o divã de Adriana Hideki, ela apresentava um comportamento um tanto mais tranqüilo, menos impulsivo.
Ele procurava alguma coisa para comer na geladeira quando o telefone fixo tocou. Era a irmã ligando do exterior. Conversaram brevemente e desligaram. Ele recolocou o fone com força no console. Estava irritado com Letícia. Ela havia ligado da Bélgica para saber sobre Victória. Reclamou que a filha não estava atendendo suas chamadas telefônicas naquele dia e bla-blá-bla. O ataque de ira, ela teve, via DDD, ao saber que a filha mais velha havia passado nos testes para a F.T.E. e agora pertencia a uma força policial de Elite. Ela era visceralmente contra o ingresso de Victória na carreira policial, tampouco em “algo”, referia-se à força tarefa, que poderia lhe arruinar a juventude. De nada adiantou ele contra argumentar que Victória completara vinte anos e poderia decidir o que quisesse.
Ele nunca poderia atender as atitudes da irmã que há sete anos atrás abandonou Victória em sua casa sem qualquer explicação plausível.
Teve sorte de poder contar com o apoio de Andréa, que o ajudou com a educação da adolescente de viva inteligência e vibrante energia. Sem o apoio da ex-esposa e a irmã dela, Giuliana, ele acreditava que provavelmente teria fracassado com a sobrinha.
Meteu-se sob a ducha morna refletindo que, após um ano da sua separação, ainda continuava surpreso por poder inundar o banheiro dágua ou mesmo espalhar pontos brancos de pasta dental na pia do lavatório sem ouvir reclamação de Andréa.
Enxugou o corpo com cuidado e o observou no espelho, satisfeito com o resultado de anos de exercícios variados, combinados com natação que lhe dotara de musculatura compacta e bem definida.
Vestiu uma calça de algodão rústica e caminhou descalço até a sala para atender à campainha que tocava repetidamente. Provavelmente era o síndico, vizinho de porta, com alguma informação sobre as constantes assembléias do condomínio.
Abriu a porta com um gesto rápido, dando um passo para trás como se tivesse sido golpeado no peito.
Diante dele estava Gabriele Moreaux, a policial da Interpol Francesa com quem ele, oito meses atrás, tivera um intenso romance. Depois, ela o havia deixado sem qualquer palavra ou explicação.
Ao seu lado, estava o porteiro com o rosto rubro.
__Eu disse a ela que não podia subir sem que eu o avisasse antes, mas ela não me ouviu. Apresentou uma carteira com um brasão que disse ser da Interpol e entrou direto. – explicou-se.
Gabriele entrou no apartamento observando na passagem o peito nu de Rômulo com aquele seu olhar peculiar semelhante ao de uma pantera espreitando a presa. Fechou a porta ao passar.
O porteiro, verificando que o Delegado conhecia a mulher, tratou de sair rápido dali, resmungando para si que, em “negócio de tubarão, sardinha não metia a barbatana”.
Ela acercou-se de Rômulo sem dizer palavra. As mãos desceram sem pudor até a calça dele, desabotoando um a um os botões.
Mirabili
-Maravilha em latim-
A mulher alta passou pela checagem da Polícia Federal no aeroporto e logo procurou um táxi. Ela havia vivido parte de sua vida no Brasil e os últimos quatorze anos na ilha de Mikonos na Grécia. Seus negócios, além da clínica médica particular que mantinha na ilha, giravam em torno da pesquisa, fabricação e venda de remédios. Era possível que seus irmãos pensassem que ela não se atreveria a voltar ao Brasil para participar do processo de sucessão do pai. Estavam enganados.
Todos aqueles anos, estivera mais próxima do pai do que os outros. Stravos instalara-se em Santorini, ilha vulcânica próxima de Mikonos. Por mais que ele a tratasse com desprezo e distanciamento, quando adoeceu, pediu que a chamasse. Não confiava em médicos que não fossem da família. Quando deixaram o Brasil, ela contava com vinte e um anos. Terminara a faculdade de medicina em Atenas.
Na necessidade de orientar o tratamento do pai em sua casa, Miranda Mirabili Dikópolus conhecera e se aproximara da arisca e misteriosa Aaliyah Kalthum, conhecida como “a egípcia”. Esta se tornara terceira mulher de Stravos dois anos após a saída dele do Brasil. Tinha apenas dezoito anos e desde os quinze, seus pais miseráveis a haviam vendido ao grego por uma quantia que lhes garantiria alimento por pelo menos três anos. Atualmente com trinta e dois, ela se aprimorara na difícil arte de conviver e influenciar o patriarca.
A egípcia e o conhecimento do real estado de saúde do Kirié eram dois trunfos que possuía a mais do que os irmãos que a desprezavam. Talvez se eles soubessem um pouco dos segredos que ela guardava, deixariam de encará-la como uma piada do Kirié ou um miserável “bobo da corte”. Poderiam temê-la ou mesmo, odiá-la. Desprezo e ódio eram sentimentos mútuos entre os irmãos. Stravos sabia disso. Não se importava.
Eugenia
Na sala de monitoramente eletrônico do aeroporto, Rômulo e sua equipe observavam atentos as imagens da entrada de Mirabili no país. Antes dela já haviam passado por ali, Ulisses, oriundo da Alemanha, Telêmaco da Irlanda, Menelau da França e Adônis da Espanha. Com a chegada dela, completara-se o rol de todos os Dikópolus pretendentes à sucessão, residentes no estrangeiro que aportavam no país. Eles não trouxeram seus familiares. Se logo fosse apontado o sucessor em uma espécie de disputa ou concurso elaborado pela mente degenerada do Kirié, os derrotados pretendiam voltar rapidamente para o exterior.
__Com a chegada da herdeira indesejada, completa-se o rol dos que querem garantir a sua parte na fortuna de Stravos. – apontou Giuliana.__O intrigante é a tolerância da velha serpente grega com a filha que causou, no seu pensamento maníaco, a morte da sua esposa adorada. Os registros médicos do parto apontam eclampsia e não havia como salvar Zara Dikópolus. Paranóico, o grego manteve a esposa por todo o período da gravidez na própria casa. Depois que sofreu o AVC, só permite que a filha rejeitada o assista e medique. Claro que ela escolheu uma equipe médica de primeira linha e providenciou a compra dos melhores equipamentos para manter o pai bem assistido. Apesar de tudo, parece gostar genuinamente do velho.
__É psicose de família. Todos veneram o pai como se ele fosse um ente sobrenatural. Leu a ficha de cada um deles? Possuem QI acima da média e constituição física formidável, além de boa aparência. Todos dotados de atributos físicos admiráveis. É a família de criminosos mais bem apresentável que conhecemos. Há suspeita que Stravos praticou a eugenia com seus descendentes e os selecionados sofreram uma intensa lavagem cerebral. Além dos filhos que teve com as duas primeiras mulheres, ele possui muito outros espalhados pelos países. Alguns mortos misteriosamente após o nascimento, outros não reconhecidos. Com o dinheiro, ele garante que a mãe e criança não atravessem o seu caminho.
__O filho mais velho, Ulisses, tem sessenta e dois anos. É possível que Stravos já fizesse a seleção genética de seus descendentes naquele tempo?
__Há registros de que os espartanos praticavam a Eugenia na Grécia antiga. Simplesmente não havia espaço para os deficientes físico ou mental. Há registro da prática em outras civilizações antigas. Algumas, nem tanto.
Julie Duplessis
A Delegada Toledo consultou as fichas em suas mãos decidindo-se se era o melhor momento de abordá-lo sobre outro assunto delicado.
__Você sabe que Moreaux e Duplessis farão parte da equipe da Interpol estrangeira que trabalhará conosco no Brasil?
Ela fitou o rosto másculo de Rômulo com interesse. Tinha conhecimento do rápido e mal sucedido envolvimento do dele com Gabriele Moreaux.
__ Duplessis está participando da “Plêiades”? Eu pensei que ela não havia aceito o convite para a missão.
__Ela confirmou sua participação há pouco. Auxiliará com o treinamento dos recrutas, mas sua função principal é a construção de toda a estratégia de ação contra a organização criminosa dos Dikópolus. Sua tese de mestrado foi sobre a mente criminosa de Stravos Dikópolus.
A musculatura forte do maxilar de Brandão contraiu-se diversas vezes. A Delegada aproximou-se dele, agora visivelmente interessada. Esperava avistar alguma reação adversa na face do ex-cunhado quanto a Gabriele e não à respeito da distante e misteriosa Duplessis. Decidiu aborda-lo diretamente.
__O que o incomoda a respeito da comissária Duplessis?
__Vários fatores nela e em seu caráter, incomodam. Julie Duplessis é a pessoa mais difícil de se conviver profissionalmente que conheci em toda minha carreira policial. Parece não se interessar diretamente por pessoas ou o que derive delas. Centraliza seu intelecto e energia unicamente para obter resultados ou alcançar os objetivos a que se propõe. Tive uma péssima experiência com a comissária nos quatro meses de treinamento sobre tática anti-terrorista que fizemos em Lion no ano passado. Não só eu, claro.
__E ela só tem trinta anos? – inquiriu Giuliana, consultando os apontamentos em suas mãos.
__Sim. É ambiciosa e no ritmo que segue, ou enfartará antes dos trinta e cinco ou possivelmente conseguirá ser eleita para um cargo de chefia na Secretaria-Geral da Interpol antes de completar quarenta anos. Quanto à Gabriele, ela esteve comigo hoje. Depois, quando fui tomar banho, o que ela acha um excesso de higiene, tornou a desaparecer sem explicação. Esta relação do tipo, bumerangue realmente me deixa irritado.
Nosferatu
Brandão percebeu que Giuliana estudava a melhor forma de abordá-lo sobre um assunto que a preocupava e, conhecendo a índole da Delegada Toledo, ele sabia que das poucas coisas que se importava ou preocupava, depois de Miriam e Andréa, era Victória.
__O assunto “Nosferatu” ainda a preocupa?
__Sim. Penso que está além do tempo de Victória decidir-se quanto a seguir ou não a imposição judicial de ocultar a cor real de seus cabelos e íris, além da peculiaridade rara de suas pupilas.
Com quase treze anos, Victória havia sofrido perseguição na escola por apresentar os olhos de gato que, segundo os adolescentes, eram do “Nosferatu”. Ela suportou a perseguição até que um dia acabou testemunhando a morte misteriosa de um de seus perseguidores. Em decorrência do stress pós-traumático, ela apresentou amnésia emocional, esquecendo tudo que vivenciara até depois da ocorrência do crime. Pretendendo proteger a filha, que provavelmente teria sido testemunha do crime, Antonio impetrou uma ação para permitir que Victória alterasse suas peculiaridades e estas não constassem em qualquer documento de identificação. Foi concedida e, aquela imposição poderia ser afastada pela declaração de vontade de Di Angelis, depois que ela completasse dezoito anos.
__Você acredita que este ritual de ocultar seu aspecto peculiar está prejudicando Gie? Ela me parece muito bem e há muito se acostumou, assim como está acostumada a usar constantemente luvas e a cuidar rigorosamente da higiene, como Letícia a educou. De nada a ajudará tocar em velhas feridas.
Gie era o apelido carinhoso com que eles chamavam Victória. Iniciara em Angie, Angi e derivara para apenas Gie.
__Ela lhe parece bem? E como se explica a sua forma indiferente de encarar os acontecimentos difíceis na sua curta vida, que não foram poucos? Ela não se importa em não recordar a infância, ou mesmo, reagir de uma forma mais coerente ao abandono pela família. Por último, há este acontecimento com o pai e, tanto neste quanto a de ser banida da família aos treze anos, ela sequer derramou uma lágrima, fechando-se em sua armadura estóica. Isso pode estar destroçando-a interiormente.
__Victória desenvolveu mecanismos de defesa eficientes. É uma guerreira. Conversei por alto sobre isso com a psicóloga, Adriana Hideki. Na avaliação dela, o mecanismo de defesa mais eficiente de Victória é a sua hiperatividade. Enquanto está em frenético movimento, ocupando o corpo e a mente, ela não se deixa esmagar. Em um momento, os problemas podem deixá-la melancólica, mas é só surgir algo novo, um desafio ou mesmo uma atividade estimulante, ela se entrega com energia. Estar na Força Tarefa lhe fará bem. Será confrontada constantemente com desafios que exigirão muito de si. Enquanto isso, Adriana tentará incutir nela, lentamente a percepção de que em um momento em sua vida terá que encarar seus pesadelos de forma direta ou será vencida por eles. Mas ela precisa entender isso.
Áquila Rex
-Águia Real – latim-
Victória observava a fachada suntuosa e muito iluminada do hotel Áquila Rex. Ali estava acontecendo um importante congresso de Psicologia e Psiquiatria com o tema principal: Autismo. Todos os palestrantes tinham hospedagem gratuita no local e Adriana estava instalada na suíte 93.
O que a impressionava era a colossal cabeça de águia que se projetava do terraço. Parte das asas formando um arco. Tratava-se de um bonito e bem conservado monumento em estilo art-noveau.
Ela entrou no saguão com o vaso de flor na mão. Certamente surpreenderia Adriana, pois quando ela a convidara para o evento, lhe dissera que não poderia ir ao hotel sob um pretexto. O motivo real era que na data de seu aniversário, ela preferia estar em um lugar tranqüilo e pouco povoado, pescando com seu pai. Depois do que acontecera, ela não tivera mais coragem para ir vê-lo. Tentara naquela tarde de domingo, porém, não conseguira.
Ela minorara sua tristeza no esforço da escalada. Em certo momento, surpreendida por uma ligeira vertigem, por precaução, desistira de seguir adiante no exercício. Mas conseguira esvaziar a cabeça.
Avistou sua amiga e terapeuta entre um grupo de congressistas e parou indecisa se ia até lá ou aguardava melhor oportunidade. Estava com calça e jaqueta de couro macio, bandana prendendo os cabelos rebeldes, botas de cano alto e mochila nas costas. Na vista do traje social das pessoas que circulavam, decidiu ficar apenas na entrada do saguão da recepção. Não demorou muito e Adriana a viu. Saudou Victória com um sorriso radiante, liberando-se das pessoas com quem conversava para ir até a recém-chegada.
Victória Di Angelis rememorou meses atrás, quando procurou o consultório de Adriana em Princesa do Leste. A jovem policial havia passado na primeira fase da seleção de policiais para a Força Tarefa Especial. Uma das exigências preliminares era se submeter a uma avaliação psicológica com a psicóloga que trabalhava para a Secretaria de Segurança Pública. Depois da avaliação, por sugestão da Delegada Giuliana, a policial passou a freqüentar a terapia com Adriana.
Quando estava com ela sentia-se bem a ponto de conseguir lhe contar sobre alguns desmandos que fazia por impulso ou mesmo, apenas silenciar e ter aquela sua necessidade compreendida. A fala compassada de Adriana, seu olhar e a energia do toque de suas mãos tinham o dom de acalmá-la, faze-la sentir-se segura, livre da sensação de constante perigo ao redor. Pelo menos momentaneamente.
__Você veio! – disse a pequena nissei, segurando a mão de Victória nas suas no seu típico e acolhedor gesto de boas vindas. Enlaçou o braço nela e a conduziu para dentro do saguão.
Na passagem por perto de um garçom, a policial apanhou uma taça de champanhe para si e outro para a companheira.
__Eu vim passear na capital - omitiu a principal razão - e depois de perambular pelas ruas, por força unicamente do acaso, me dei conta que estava na frente deste hotel com um misterioso vaso de flor nas mãos. Aliás, com estes meus trajes, decerto vão pensar que sou a “Selvagem da Motocicleta” que se desgarrou da sua turma e acabou perdendo-se em um congresso.
Entregou a flor a Adriana que lhe retribuiu com um sorriso travesso e olhar malicioso.
__Você e o acaso parecem ter uma boa relação. – disse, acariciando a delicada orquídea. __E o seu “acaso” é esperto. Até conhece meu nome. – apontou para o cartão endereçado a ela que havia com o presente. __ E quanto à selvagem, você não deixaria de ser atraente até vestida com a roupa que o homem usou para pisar na lua.
Embaraçada, Victória, vestiu sua melhor expressão de turista em harmonia com o ambiente, arrebatando mais um champanhe do garçom que circulava próximo.
__Ei, alguém que conheço, de temperamento adoravelmente extrovertido e irrequieto, ficou ruborizada? Venha comigo. Fiz plano para nós esta noite. Mas antes, quero lhe apresentar uma pessoa a quem respeito e considero grande amiga.
Elas seguiram pelo salão, agora alheias às pessoas que as observavam com admiração e ao par de olhos cor de âmbar que espreitavam, talvez um tanto mais interessados que os demais.
‘ Victória Di Angelis aqui na capital. Talvez com sorte eu consiga uma chance de me aproximar. ’ – exultou o jornalista Miguel que viera de Princesa do Leste para fazer a matéria sobre o importante congresso.
Eros e Psiqué
Adriana apresentou Victória para Maria Augusta Villamaior, psiquiatra mundialmente conceituada e autora de vários livros. Alguns deles, ela sabia que fizera parte da biblioteca particular do seu pai.
__Vou buscar mais champanhe para nós. – anunciou Adriana, saindo. Augusta sorriu para a jovem diante de si.
__Você é a filha mais velha do juiz Antonio Di Angelis? Eu acredito tê-la avistado uma vez, oito anos atrás.
Victória lembrava-se quando, seu pai tentou convence-la, sem sucesso, a fazer terapia com Augusta. Até fizeram uma entrevista preliminar, quando ela lhe dissera seu nome, a data de nascimento e alguns detalhes sobre seu esporte predileto: ginástica acrobática. Naquela época ela estava frustrada porque era apontada com grande potencial pelos treinadores, mas não parava de crescer. Com doze anos de idade ela já havia ultrapassado a altura de sua mãe. Mas aquela frustração não havia sido o motivo, na época, pelo qual os pais a queriam na terapia.
__Sim, eu tinha treze anos e nós conversamos brevemente.
Augusta adiantou-se e abraçou a jovem.
__Parabéns pelo aniversário. Vinte anos é uma bonita idade.
__Como sabe sobre meu aniversário?
A elegante mulher idosa tocou-a no ombro.
__Desculpe se a incomodei, mas, não se impressione muito com minha boa memória. Tenho alguns truques. Sei que hoje é o seu aniversário porque, quando você me disse, oito anos atrás, relacionei a data com o nascimento do meu primeiro neto. Lembrar já foi um dos meus melhores instrumentos de trabalho.
__E minha atividade das horas vagas é esquecer. – Victória respondeu sem refletir. Simplesmente fluiu.
A psiquiatra perscrutou a face da policial com simpatia.
__ Há momentos na vida em que é preciso “vencer estrada e muro” para “erguer a mão e tocar a hera”. Esquecer protege, mas lembrar é a única chance de alcançar a tranqüilidade, paz interior.
__Certo. Vou tentar não me esquecer disso. – riu a policial.
Na verdade, nos testes de aptidão e outros que fizera para a F.T.E., constataram que ela possuía a vulgarmente chamada “memória fotográfica”. Talvez sua memória fosse seletiva, ou talvez se esquecera da infância como uma forma de proteção, como a psiquiatra insinuou.
Um homem alto, aproximou-se das duas, cumprimentou Victória e beijou carinhosamente os cabelos brancos da mulher idosa.
__Precisamos ir, mamãe. Você ainda tem que se preparar para o discurso de encerramento.
Despediram-se e saíram de braços dados. Pouco depois, Adriana retornou sorridente. Trazia nas mãos, mais duas taças de champanhe.
__Augusta é impressionante, eu sei. Quando me aproximava, vi sua linguagem corporal ao lado dela. Metade de você parecia estar lutando para não sair correndo e a outra parte, inclinada em visível interesse, como se absorvesse cada palavra. – estendeu uma taça para Victória. __ O que ela lhe disse?
__Dois pequenos trechos do Soneto “Eros e Psique” de Fernando Pessoa. A impressão que tive é que na frase, havia muita significação ou mensagens nas entrelinhas direcionadas a mim.
__É provável.
__Mas...eu não fiz terapia com ela.
__Porém, seu pai, fez. E eu ainda faço uma vez por semana. Nós terapeutas, analistas e psiquiatras em atividade, precisamos freqüentar o divã de um terapeuta. Sei que está surpresa. Conheço poucos que sabem sobre isso. Quanto a Augusta saber um pouco mais sobre você, fique tranqüila. Ela tem fama de “buraco negro” das informações. Ela sempre tem uma capacidade surpreendente de “engolir” informação, mas o que entra no buraco, nunca mais sai.
Idéias
Victória bebeu um bom gole de sua bebida, fez uma careta e depois riu.
__Tive uma idéia gloriosa de como economizar a fortuna que você me cobra nas sessões de terapia.
Adriana deu um tapinha no ombro de Victória.
__Isso é injustiça. Você não me paga nada. É o Estado que patrocina. Mas me conte a sua idéia.
__Bem, se nestes minutinhos que você saiu pra dar uma voltinha eu já ganhei uma consulta flash com a Doutora Villamaior, o “papa” da psiquiatria, então, visto que eu não pago suas sessões, posso utilizar a idéia para economizar o dentista, por exemplo.
__E? – Adriana observou-a relatar com o seu jeito expansivo, gesticulando amplamente.
__E quando eu precisar de uma consulta com o dentista, vou a um congresso de Odontologia, localizo dois ou três deles com meu radar. Abordo o mais receptivo e arregaço os beiços diante dele e digo: Aí, dotô, meu canino dói quando chupo sorvete. Será que tem cárie?
Adriana gargalhou alto e Victória tomou a champanhe da mão da terapeuta.
__Bebida confiscada. Está eufórica demais para quem tem metade do corpo no Monte Fuji. A que tem um pé no Coliseu de Roma, aqui sou eu.
A Hideki, tornou a rir de Victória.
__E como seu radar poderia detectar um dentista?
__Fácil. Todos os doutores que conheço, incluindo médicos, possuem aspecto tão limpo e esterilizado a cabeça à unha do pé, como se tomassem banho dentro de um tonel de éter, logo que acordam. Eu como sou da facção dos empoeirados, do branco do olho ao calcanhar...
A terapeuta gargalhou novamente e a policial refletiu se as suas bobagens eram realmente engraçadas ou sua doce Adriana estava um pouco “alta”. Na verdade, ela era adorável, sempre.
Provou um gole de cada taça de champanhe e além do pequeno ricto de dor, gemeu.
__Devo colocar chapéu de três pontas com guizos agora ou depois?
Sua companheira interrompeu sua risada, ficando subitamente séria.
__O que é isso? Você está com dor ou é algum...
__Não. Não é cacoete. Apenas uma dor sem importância no quadril que passará quando eu tomar um analgésico. Doei medula. Sei o quanto cacoetes preocupam psicólogos e...
__Quê? Bebida confiscada, senhorita. – Adriana disse, apanhando as duas taças das mãos de Victória. __Se você passou por punção lombar, então teve que tomar anestesia. Ela atua como depressor do sistema nervoso central e não queremos que a bebida piore o seu quadro. Você precisa de pelo menos quarenta e oito horas sem ingerir qualquer bebida e remédios além de um analgésico.
__Ops. Decerto foi por isso que senti uma ligeira vertigem na minha escalada de hoje e...
Adriana quase gritou no salão.
__Quê? E você ainda se meteu a escalar uma parede de pedra? Venha! - Ela deixou as taças sobre uma mesa e apanhou o pulso de Victória, conduzindo-a obediente atrás de si. __Eu sei que doar medula não é um bicho de sete cabeças, mas acho que você já tomou champanhe demais antes que eu as confiscasse. Hoje é o seu aniversário e a quero bem para que o comemore comigo. Vamos até a minha suíte. Lá poderá tomar um banho e dormir o quanto precisar. Mais tarde eu a acordo e ficamos mais um tempo juntas até quando você precisar ir embora.
Ética
Horas depois, Di Angelis dormia profundamente na imensa cama king-size da suíte do Hotel. Adriana já havia ido e vindo várias vezes até o quarto na penumbra. Revezava-se entre o congresso e a guarda da adormecida.
__Sua amiga está bem? – perguntou-lhe Augusta com expressão de interesse nos olhos vivos.
__Sim. Ela apenas está cansada e talvez com o sistema nervoso desacelerado pelo efeito da anestesia.
__E quanto a você? Já disse a ela que não poderá mais ser sua terapeuta?
__Ainda não tive coragem.
Adriana se envolvera emocionalmente com Victória e isso ia contra a ética do relacionamento paciente/terapeuta.
A tenui filo pendet vita
- A vida está suspensa por um tênue fio –
Retornando à suíte, Adriana ouviu o barulho do chuveiro. Conteve o ímpeto de entrar no banheiro sob um pretexto qualquer. Sabia que Victória a considerava mais do que sua terapeuta. A considerava sua amiga e não podia decepcioná-la.
Seu celular tocou. Era o ex-namorado, também psicólogo, da companhia de quem ela conseguira se desvencilhar minutos atrás.
__Rodrigo? Você está no saguão com amigos me esperando para o último brinde da noite? Não, eu não combinei isso com você. Não quero sair agora. Já estou no meu quarto. Certo, se eu mudar de idéia, eu ligarei.
Desligou e voltou-se ao ouvir um pequeno ruído. Victória estava em pé na passagem para o banheiro, secando os cabelos úmidos com a toalha. Já estava vestida completamente com roupas limpas. O olhar dela fulgurava. Nas suas conversas triviais de amigas, já haviam conversado sobre os relacionamentos desfeitos de ambas.
‘ Ciúmes de mim? ’
Adriana pensou sobre o quanto seria adorável ter o olhar enciumado de Victória sobre si. Mas havia a “regra três” dela, onde a policial relatava que simplesmente perdia o interesse por seus relacionamentos, após, o mínimo de três dias de encontros e no máximo três semanas. Aquela peculiaridade a incomodava, mas certamente, incomodava muito mais a outra pessoa envolvida na breve passagem daquele cometa.
Nos meses que a tivera no seu divã, aprendera o suficiente sobre Victória para saber que a sua inconstância era o que se podia esperar de uma garota da idade dela, fervilhante de energia, impetuosa, exorbitantemente bonita e com os hormônios fervilhando nas veias. Ela diferente da média e como tal, reagia diferente ao assédio constante das pessoas.
Na analogia, Adriana comparava o corpo formidável de Di Angelis como uma potente Maclaren dirigida a mais de trezentos quilômetros por hora em uma pista cheia de buracos e obstáculos, pelo seu Eu, uma adolescente impetuosa.
Era imatura. Ainda assim, adoraria estar com ela em um demorado ritual da luxúria, te-la segura em seus braços amante. Enquanto durasse. Mas lhe faltava coragem de lhe falar. Victória a via como sua confidente e amiga.
A reflexão dela foi interrompida por um grito.
__Alguém ajude! - Elas ouviram o apelo desesperado da voz de uma mulher.
Adriana procurou a porta para o corredor , mas Victória foi direto para a sacada da suíte.
__Tem alguém no terraço! – ela apontou. Na noite, a silhueta miúda de uma criança estava recortada contra o céu enluarado.
Logo, um alvoroço de vozes se instalou pelo corredor. Adriana ligou para o resgate e enquanto tentava explicar a ocorrência para o atendente, Victória passou em direção à porta de saída. Carregava sua mochila.
__Aonde vai? – perguntou sem receber resposta.
Elisabeth
Subindo correndo a escadaria de acesso ao terraço, a policial se deparou com a passagem de acesso ao lugar, cheia de pessoas alvoroçadas.
Abriu caminho entre elas e adiante no terraço avistou um casal, possivelmente os pais da criança. A mãe chorava e chamava a menina.
__Ela não pode entender que está em perigo, querida. – tentava acalma-la o marido.
A mão de Augusta pousou leve no ombro de Victória.
__Elisabeth é autista. A disfunção de origem desconhecida pode surgir em crianças antes que completem três anos de idade. Não compreendem o mundo como nós. Entendem que tudo ao redor, incluindo pessoas, são meros objetos. Estes últimos, para os servirem. Eles são o centro do seu mundo. Tampouco compreendem conceitos abstratos como o perigo e a morte, o sofrimento ou o medo. Se a equipe de resgate não vier a tempo, temo que não haja salvação. – ela disse em voz baixa, pesarosa.
Viram com horror que Elisabeth, que estava sentada na marquise, levantou-se e transitou ali como se em uma calçada indo direto para a cabeça da águia, sentando-se na extremidade dela. A gigantesca estrutura de concreto armado se projetava para o vazio.
Para tornar a situação mais dramática, começou uma chuva fina e a ventar no terraço.
__Abram caminho! – comandou o bombeiro chefe da equipe de resgate. Ele e mais cinco homens se postaram no terraço. Um psicólogo apressou-se a explicar para o líder a condição especial de Elisabeth. Por momentos, ele pestanejou perplexo. Provavelmente nunca, em sua carreira, havia se defrontado com um problema semelhante.
__Autistas não toleram ser tocados sem seu consentimento. Se tentar aproximar e ela pensar que vai tocá-la, tentará fugir e será na direção contrária a você. O vazio. – Augusta o advertiu.
O oficial caminhou dois passos em direção à estrutura. Elisabeth o avistou e cessou o movimento repetitivo que fazia com as mãos, mudando para o de pêndulo com o seu corpo.
__Fique parado. Se fizer mais algum movimento brusco ela vai correr. – gritou a psiquiatra.
__Certo. Vamos tentar então a escada Magirus. Já a requisitamos e está a caminho. – disse o oficial, envergonhado como um menino a quem a professora acabara de chamar a atenção.
Ele distribuiu instruções pelo rádio e para dois da sua equipe. Deveriam postarem-se na sacada do apartamento logo abaixo de onde estava a criança. Precisavam explorar todas as possibilidades.
O gerente do hotel, que estava entre as pessoas ali, explicou que na planta da estrutura, havia a indicação que a cabeça de águia poderia suportar no máximo, cinqüenta quilos. A informação eliminava qualquer chance de um adulto caminhar até onde a menina estava sentada.
O vento aumentou sua força e Victória decidiu tentar aproximação furtiva pra a cabeça de águia. Com a tensão ao redor, ela conseguiu esgueirar-se para as sombras formadas pelas estruturas da casa de máquinas e das caixas dáguas. Deitou no piso e se arrastou devagar em direção à amurada. Mantinha-se invisível para todos ali, devido a pouca visibilidade na noite, agravada pela chuva. Em certo momento, eles a veriam, mas ela estava determinada a tentar agir, somente se a situação crítica, precipita-se.
‘ Mantenha a calma e não faça movimento brusco ’. – instrui-se mentalmente.
Diversos planos surgiram em sua mente e elas os descartava na medida em que se mostravam insuficientes ou sem chance de serem executados com alguma segurança.
Os bombeiros e policiais do Resgate retiraram dali as pessoas que não seriam úteis, permitindo apenas que seis permanecessem. Entre elas, Augusta, Adriana e os pais da menina.
Qualquer gesto poderia assustar a criança a ponto de fazê-la saltar.
Lá embaixo, soava forte a sirene do carro dos bombeiros que se aproximava com a gigantesca escada Magirus. Na calçada, jornalistas e pedestres aglomeravam-se entre as viaturas da polícia
‘ A escada está chegando e tudo vai terminar bem. Deixe que os bombeiros façam seu trabalho’ – sugestionou-se a policial, tentando esvaziar-se da tensão que ameaçava lhe travar a musculatura.
Usava seu equipamento de escalada. Na cintura, o cinturão com uma correia que passava entre suas coxas, preso aos mosquetões e a corda de alta resistência.
Viu quando o oficial do resgate recuou lentamente, colocando em si um cinturão preso em uma corda. De certa forma ele tivera idéia similar à dela para o caso a de que a situação se precipitasse e fosse necessária uma ação rápida e arriscada. A diferença era que, ela estava em posição paralela à murada e ele, perpendicular. A trajetória deles para a criança, formava um “L”.
A mãe de Elisabeth aproximou-se, da murada, chamando a filha e exibindo para ela uma grande barra de chocolate. O oficial a acompanhou-a, devagar.
A menina voltou a cabeça, avistando próximo, o “objeto” que costumava alimentá-la, exibindo o seu doce predileto. Levantou-se, oscilando perigosamente com o movimento. O olhar fixo no chocolate. Deu um passo e uma traiçoeira lufada de vento forte se abateu contra todos no terraço, fazendo a criança pequena desequilibrar-se. Seria mais um dos tombos que ela acostumara-se no playground se...
Victória ouviu o grito de terror da mãe e algumas pessoas ali. Na sua mente hiper acelerada pela adrenalina, via Elisabeth caindo em câmera lenta e o homem forte correndo em direção a ela, parando antes da águia. Na queda, a pequena mantinha os olhos muito abertos e havia um pequeno sorriso em seus lábios. Apreciava a sensação de poder voar.
Então, aconteceu. A musculatura do corpo da policial agiu, como se não necessitassem mais do comando de sua mente.
Os que estavam no terraço avistaram Di Angelis surgir das sombras da murada, correndo com passos vigorosos até a extremidade, quando deu um salto para a asa do monumento e de lá, catapultou-se para o vazio, girando duas vezes no ar para, em perfeita sincronia, aparar a criança em queda.
A extremidade da corda de alpinismo de Victória estava presa em uma grade por dois mosquetões e a policial agora lutava para manter presa a si a criança que se debatia. Também se preparava para o impacto contra a lateral do edifício.
O efeito pêndulo seria cruel e ela tentou atenua-lo, saltando paralelamente à parede. Oscilou no vazio duas ou três vezes, tentando proteger a cabeça com o braço livre. Aguardava o momento crítico do impacto maior.
Dois pares de braços fortes, surgidos abaixo delas, a seguraram com força e puxaram para a segurança da sacada de um apartamento do nono andar.
A criança gritava a plenos pulmões, furiosa por ter seu vôo interrompido.
Victória, não conseguia comandar as suas pernas. O lado esquerdo do seu corpo, do ombro ao tornozelo, estavam feridos pelo breve movimento de pêndulo, chocando e roçando com força contra a parede.
Ao redor de si, ela avistou clarões intensos que a ofuscava. Reclinou a cabeça, vergada pela vertigem, tentando em vão não desmaiar.
__Um médico! – gritou um homem da equipe do resgate que a amparou quando ela desmaiou.
Quando tomou consciência de si, Giuliana estava ao seu lado, amparando-a na calçada diante do hotel. Do outro lado, o oficial ajudava a conduzi-la a uma ambulância.
__Eu estou bem. – balbuciou.
Um repórter e sua equipe surgiram diante deles. O homem fez uma pergunta ininteligível para Victória, moldurado pelo clarão dos holofotes de iluminação do câmera-man. Ele apontou o microfone em direção aos lábios da policial.
__Saia da frente! - bradou Giuliana Toledo.
O repórter continuou lutando contra o cordão de proteção em torno da policial. O braço, estendido, por acidente atingiu o rosto de Victória com o microfone.
Desta vez, Giuliana lançou-se contra o homem, derrubando-o com um potente soco no queixo.
__Eu vou processá-la! – ele ameaçou, afastando-se apressado.
__Não será o primeiro. – A Delegada rosnou.
Victória Alada
(Niké tis Samothrakis)
A Vitória Alada da Samotrácia é uma escultura que representa a deusa Atena Niké (Atena que traz a vitória), com amplas asas e apesar de estar seriamente avariada (encontrada sem os braços e a cabeça) é um referencial da beleza da arte grega pelos seus detalhes artísticos que imprimem a leveza de vestes ao vento ao rijo mármore.
Foi descoberta em 1863 nas ruínas do Santuário dos Grandes Deuses da Samotrácia na ilha do mesmo nome, no Mar Egeu. Em grego, o seu nome é Niké tis Samothrakis .
“Testemunhei um milagre e este milagre veio do céu...”.
Com esta frase, Miguel Marques, jornalista investigativo, deu início à manchete da segunda feira do jornal “Arauto da Princesa”. Escreveu mais duas linhas como preâmbulo sua narrativa para depois atingir o núcleo.
Ele e sua equipe foram alertados da ocorrência com a criança e imediatamente subiram até o terraço do prédio ao lado, de onde o fotógrafo da equipe conseguiu imagens excelentes com uma potente lente de aproximação.
Relatou todo o drama, floreando um pouco alguns detalhes até o ponto em que ele considerou o apogeu.
...E eis então que surge, “Victória Alada” com toda a pujança de seu corpo jovem maravilhoso, que, com um salto mortal, alcançou a criança em plena queda livre...
A partir deste parágrafo, Miguel explicou a analogia entre a estátua grega “Vitória Alada da Samotrácia” com a Victória Di Angelis, que, como se possuísse asas arrebatou Elisabeth da morte.
Inseriu abaixo as seis fotos nítidas do salto acrobático fantástico da policial. Tinha plena consciência do impacto que causaria nos leitores, afinal, até um acrobata de circo jamais viraria o topo de sua cabeça para o abismo sem antes se assegurar que teria uma rede de segurança.
No outro parágrafo, Miguel louvou a bravura, o espírito abnegado e caráter valoroso da policial que não “titubeou em enfrentar a morte, arriscando sua vida” .
Finalizou com o refrão que criara: E eis que surge, “ Victória Alada”, o milagre do século XXI”.
Ressuscita-me
Ela acariciou a cabeça nua do filho. O menino de seis anos dormia. A pele muito pálida, olhos encovados com olheiras escuras denotavam a devastação física que sofrera. O quarto estéril garantiria que a criança não contraísse qualquer infecção ou doença oportunista no período que seu sistema imunológico devastado pela leucemia demorasse para se recuperar com a transfusão de medula óssea recebida.
__Ele ficará bem. – disse o médico, confortando a mãe. __Mas, se tivéssemos que esperar cinco dias ou mais, não resistiria.
__E o risco de rejeição da medula?
__Não há. O doador é totalmente compatível.
Um doador totalmente compatível. O milagre do renascimento para aquela criança que só havia conhecido o sofrimento por quatro anos de sua curta existência.
O pequeno abriu os olhos e tentou sorrir, flexionando os lábios ressecados.
__Mamãe, eu tive um sonho. Sonhei com o meu avô. O da foto que fica em cima do seu piano. Ele me disse que eu ia crescer, ter um futuro.
__Sim, meu amado. Agora você terá um futuro.
Clair conteve a emoção forte que oprimia seu peito. Nunca pudera conversar sobre o futuro para seu filho. Era uma espécie de assunto proibido tacitamente entre eles.
A criança abriu muito os olhos azuis semelhantes ao da mãe.
__E vou poder ter um cachorrinho?
__Você terá o seu cachorrinho. Prometo.
Ela saiu do quarto daquele andar que transformara em um hospital particular e seguiu para o elevador. Subiu até a imensa cobertura, e de lá até o escritório. Sobre sua mesa, o relatório detalhado dos passos de Victória Di Angelis no domingo. A leitura da ocorrência no Hotel Áquila Rex a deixou estarrecida.
Capítulo 2
Altera die
- Dia seguinte -
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O livro "Victória Alada" , possui 240 páginas, feito com capa de papel cochê fosco, com orelhas escritas pela Escritora Lúcia Facco ( Doutora em Literatura) e apresentação de Glória Azevedo (Doutoranda em Literatura).
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PARA ADQUIRIR O LIVRO: www.editoramalagueta.com.br
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Publiquei o primeiro capítulo do total de 7 capítulos. Se gostou, deste primeiro capítulo, encomende o livro.
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NÃO IMPRIMA. Tenha compromisso com o Meio Ambiente. O ar que respiramos depende da consciência de todos.
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Obra registrada na Biblioteca Nacional - Não contribua com a desvalorização do trabalho do autor.
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Comentários: laralunna@gmail.com
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Em breve. A continuação do Victória Alada : Mitera (Mãe em Grego).
11 comentários:
Caríssima Leoa Lara Lunna! Apreciei tua iniciativa de postar aqui o primeiro caítulo de teu livro Victória Alada. Penso que, ao disponibilizar o texto , por este meio,propicias um primeiro contato de possíveis leitores e leitoras que ainda não conhecem tua obra, e partilhas este "fruto de tua alma" e criatividade com os visitantes do blog. Afinal, arte se cria para ser ofertada ao mundo, e para tocar "corações e mentes", provocando reflexões, movimentos e transformações! Beijos pintados e alados, querida.
Obrigada pela visita! Teu link ja esta no elenco dos links indicados la do meu blog.
Gostei muito do primeiro capitulo do teu livro. Escreves muito bem.
Parabens e muito sucesso!
Um abraço!
Eliara Santos
Oi!! Olha pode deixar, eu aceito sim essa parceria eu já coloquei um link do teu blog no meu! Bjs
nossa que trabalho vc re-escreve tudo? parabéns! gostei do seu blog legal!
Olá, sou o Renato do Blog Gospel LGBT, estou te add na lista de blogs amigos, e se vc tiver algum banner me envie. Obrigado pela parceria!
Adorei o post! Aceito a conexão entre os nossos blogs... Colocarei o seu link no meus favoritos, ok?! Grande abraço!!!
Novas visitas por aqui, ventos e movimentos, que boa novidade! Venho para deixar beijos alados, e meu apoio e amor incondicional, com votos de que tua alma criativa produza muitos frutos, através de tua habilidade com as letras, cores e amores.
Olá dona Lara Lunna, já ouvi falar de você, aliás, minha esposa tem um livro seu, mas confesso que nunca li.
Quer uma parceria?! Será um prazer!
Beijoss
Como fã dos contos da Di Angelis não pude notar as alterações na biografia da personagem: seu pai juiz, uma mãe viva e de nome Letícia, a peculiaridade de seus olhos, o encontro antecipado em uns quatro ou seis anos com a delegada Giuliana e com a Adriana, um tio e uma irmã antes não mencionados e que parecem ser relevantes, agora, para a estória. Espero que a Di, agora Gie, não esteja tão modificada no livro, seria um golpe duro.
Por: CL
Eu quis dizer: "não pude deixar de notar..."
Por: CL
Sôpros de vida
suavidade, cores, sons
pinceladas e pulsações:
A cada manhã, nova luz:
a vida se recompõe
se reinventa e refaz
Pétala por pétala
sílaba por sílaba
átimo por átimo
de amor e emoções
redesenhadas na palavra
escrita, dita ou sussurrada
que teço e bordo, incansavelmente, para ti...
(ANA LUISA KAMINSKI, primavera/2010)
POEMA DEDICADO À AMADA LUNNA DI LUKKA
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